quarta-feira, 31 de março de 2010

XVII

Ajuda-me

Não sabia como ajudá-la e nem como ali me encontrava, as lembranças eram vagas, tantas pessoas desconhecidas conversando. A confusão das vozes me colocava distante de todo o proceder da linguagem. Ela estava sentada do outro lado da mesa, observava com os olhos longínquos, enquanto eu pensava sobre os sentimentos de ajudar as pessoas. Nem eu mesmo me ajudava e na escola aprendi que cada um deveria ajudar a si mesmo. Hoje penso que isto é egoísmo, de minha parte procuro pessoas com quem posso dividir sofrimentos. Mesmo assim, nunca consegui ajudar ninguém, não sei como ajudar as pessoas. Ás vezes acho que elas são incapazes de lidar com os sofrimentos dos outros.
Mas ela havia me feito um pedido, um pedido imensamente profundo, de uma sensibilidade inesgotável. Por mais que ele me deixasse demasiadamente obstruso era impossível ignorar o ato de desespero que se reconhece na súplica dum pedido. O meu estranhamento se dava devido ao ângulo de visão que tinha das mulheres. Ao que parece às mulheres gostam de ajudar e não serem ajudadas. Os seus problemas são sempre maiores do que realmente são. Ao rever o que carentemente acreditava sobre as mulheres, achei apenas que era uma mulher diferente e as suas atitudes me afastava de qualquer discussão de gênero.
Os aspectos físicos peculiares e um rosto incomum na imaginação dos artistas, cujas particularidades são impossíveis de descrever. Os olhos grandes e verdes me impulsionavam para si sem que percebesse, até mesmo, distante os procurava. Ele trazia a lembrança da fotografia duma refugiada indiana que eu olhava com admiração no jornal. Não estava apaixonado, ou pelo menos pensava que não. Sei que um homem apaixonado se ilude com os olhos de uma mulher, mas não estava apaixonado, pois todos os homens daquele bar partilhavam da mesma admiração. Será que todos tinham visto a foto da refugiada indiana? Não foi este o caso. Será que era uma mulher capaz de fazer todos ficarem apaixonados? Não! O nome para isto era atração, nós estávamos atraídos feitos cães carentes de carne, era a beleza frente a nossa imaginação que nos enlouquecia. Sim, ela era capaz de seduzir os homens a sua volta. Ao mesmo tempo, que homens se multiplicavam ao lado dela querendo consumir a maçã em desespero parecia que estávamos como presas na teia da aranha, onde não teríamos chance, onde todos se encontravam derrotados em sua própria desventura. Os meus sentidos não cessavam de perseguir aqueles olhos, fazendo o eu se perder em mil pensamentos de intenso brilho abismado.
Os lábios dela eram fora do normal e o resto do corpo se escondia embaixo da mesa, como quem não quer ser visto, como algo que se cansa dos olhos que em si cessam. De onde herdara aqueles lábios? Eles se multiplicavam em dois conforme o rosto se movia e a noite passava rodando em copos de bebidas. Não eram finos e nem grossos, mas pareciam macios. Por um instante pensei em tocá-los, achei o momento inadequado, mas não teria outra chance. Achei que nunca mais a veria e que minha vida seria uma grande inutilidade se fosse incapaz de fazer o que queria. Encontrava-me em total desespero, não sabia o que fazer e nem como agir. Pensei em me atirar entre as estrelas, correr para uma rua deserta para saciar a libido com uma rapariga, mas lembrei que o dinheiro que tinha era pouco, já havia gastado muito naquela noite e que sexo não iria equilibrar o meu desespero. Após algum tempo acabei por abandonar as idéias.
Ela continuava sentada do outro lado da mesa, as minhas mãos eram incapazes de alcançar os seus lábios, mas distante se encontrava a minha boca. Queria tocar os lábios dela com a boca. Somente sente os lábios de uma mulher com outro e, ás vezes, há necessidade da língua. Queria correr minha língua pelos os lábios dela. Pensei em pedir um beijo, mas um beijo não se pede. Lembrei das frustrações que este pedido me causara na adolescência: de todos os não que se escuta querendo ouvir um sim e dos não que se expressam querendo dizer sim. Nunca consegui um beijo pedido, apenas roubado. Pensei em roubar o beijo, mas não era mais adolescente, não tinha a mesma agilidade com o corpo e nem o ânimo de quando era mais jovem. Ficava apenas lamentando com a memória de um jovem velho.
Há muito tempo não sentia vontade de roubar um beijo, e foi matutando sobre isto que decidi que a minha memória apenas seria útil se me fizesse lembrar dos grandes feitos do meu passado, não precisava de uma história que me condenasse, que me impelisse a tocar naquela boca, já me basta viver com o céu em desespero, num mundo que a todo tempo nos impõe limites. Não deveria fazer o mesmo! Achava que enquanto pessoa, na minha experiência particular poderia extravasar com alguns valores, poderia superar as condições morais do meu tempo, mesmo, que as econômicas fossem mais difíceis.
A minha história teria que me ajudar a agir e a viver, o resto estaria morto e enterrado. Todo o passado havia morrido num piscar de olhos, realmente, teria eu visto os olhos dela a piscar. A dúvida tomou conta de mim, prossegui com o anseio de colocar limites a minha imaginação e a minha memória, ou teria simplesmente que reinventar o passado para que ele não me inventasse, já que o presente importa muito mais. Se não o faço o passado me deixa doente no presente.
É uma sabedoria antiga reinventar o passado, as mentiras que gostava de ouvir quando criança passava pela a minha cabeça em imagens célticas. Assim, ansiava os meus grandes feitos, dos personagens da minha infância que vivificaram a minha vida, pois reinventar o que não existe é impossível. Algumas mentiras e algumas coisas de verossímeis passeavam na minha memória. Eu tenho uma história e não é tão ruim, mas nunca foi boa, pois não consigo separar a minha história do resto da humanidade. Mas naquele momento apenas o beijo importava, lembrei que desde cedo, muito cedo, tive que adiar os estudos para trabalhar. A verdade é que estudei apenas de teimoso, nunca tive que adiar os estudos, pois nunca tive oportunidade de estudar, realmente, foi a minha teimosia que me fez estudar, então, teria que ser teimoso e roubar o beijo.
A minha memória me trás algo de bom: a minha teimosia! Nunca tive responsabilidades, bom gosto para músicas, dom para a arte e êxito com as mulheres. Sempre tive e tenho muito mais teimosia...Este traço genealógico é importante em minha fisionomia, percebo que sou imensamente meu, isto é, um ser teimoso. Reconheço o meu passado. Descobri quem sou? Nem tanto! Mas agora posso agir no presente, falar no presente, gritar no presente.
Sabia que era uma pessoa teimosa que iria beijar aquela mulher e que faria tudo para isto, mesmo contra a vontade dela, a beijaria com certeza e não haveria dúvidas, pois um homem teimoso é capaz de qualquer coisa. Lembrei da história dos homens. Neste instante, da história de todos os homens. Pensei que a história apenas existe devido à teimosia dos homens: - de não aceitar o que está dado e de querer mudar o que existe; - de não se identificar com presente e de buscar exemplos do passado para transformá-lo. Sim, tinha uma sabedoria histórica: inicia a história quando muda as possibilidades para as experiências humanas, quando os homens começam a serem teimosos. As minhas possibilidades estavam mudando, pois a história é a teimosia e eu era a teimosia de beijar aquela mulher, por alguns segundos me vi como sujeito da minha história.
Mas como se um anjo mal me encontrasse sozinho e perdido, mais uma vez, a minha imaginação me limitava. A teimosia não é um sintoma de melhoria nas condições da vida das pessoas, ela se caracteriza pela a transformação. Assim, questionava para que saber do meu passado se as coisas poderiam mudar para pior. O anjo pessimista chamado João trouxe todo o sofrimento de volta, um sentimento de impotência tomava conta de mim, o desespero e o medo novamente se fizeram presentes. As criações históricas podem levar os homens ao aniquilamento. Isto era o que passeava no pensamento. Poderia eu morrer naquele beijo! João morreu três meses antes destas palavras nascerem e dizem os ilusionistas que foi pelo o beijo de uma mulher.
Ao tentar escapar do presságio da minha morte que parecia inevitável. Comecei a pensar nos sentimentos de bondade e de maldade. Nem sempre aquilo que se diz ser bom é bom: vice – versa. Acreditei que muitas coisas que se dizem ser más eram boas. Talvez todas as tentativas de fazer um mundo melhor eram desculpas para deixá-lo pior, pensava em fazer um mundo pior para deixá-lo melhor, mas acho que este ato revolucionário é ridículo para a minha sabedoria histórica. Achei que o mundo já estava criado e o que importa é transformá-lo, mas esta observação também era pobre para a minha memória. Procurava em todos os cantos do bar uma maneira de evitar a morte, ou será que já estava morto e não sabia? Parecia que sim, no momento que meus olhos cessaram sob ela. Comecei a pensar que todos os meus problemas eram exatamente uma única mulher. Pensei em matá-la, ou ela ou eu! Preferi aceitar a idéia que não existe finalidade para a vida humana e que qualquer mudança era bem vinda para o momento de desespero que me encontrava. A verdade era que pior era impossível. Esta resposta era a que mais me agradava, a que me manteria vivo e, com ela, a falta de esperança também revivia.
A minha infância veio na mente como um grito de socorro. Quando criança freqüentava a igreja para ver pessoas e não para chegar ao paraíso. Tinha muitos amigos devotos e não podia viver sem eles, mas hoje está tudo bem, pois a solidão é minha melhor amiga. Quando parei de acreditar em Deus descobri que nunca acreditei, ele apenas foi um meio de reviver com os meus amigos, já que a minha história faz parte de todos os homens não posso acreditar em um Deus que profana contra a vida pela a boca do padre. Diz na igreja: os justos serão abençoados, mas há uma grande injustiça na justiça. Ela exige um esforço dos homens, de cada um, um consenso, o teatro dos fracos para se chegar ao paraíso. Enfim, tem que ser justo e para uma pessoa que não gosta de fins como eu, acho estas idéias insuportáveis. Ao que parece são idéias egoístas, chantagistas e individualistas.
Acho que não sou tão fraco para ir para o céu, embora também não me simpatizo com o diabo, mas a vida parece mais envolvente no inferno. Será Deus que fala para os homens fazerem as coisas visando outra? Não existe mais solidariedade no mundo exceto as raras exceções de pessoas que pensam em ajudar as outras e, eu, naquela noite, sem pensar sobre o assunto fazia parte desta tribo. Inocente tribo! A recompensa, o futuro promissor, o reino do céu, a glória, o heroísmo, a justiça, a igualdade e a solidariedade há muito tempo haviam desistido. Estas palavras acabaram mortas como simples palavras. Aliás, esta é a primeira vez que penso nas repugnantes ideais divinas. Percebi com o tempo que tudo era apenas uma das maneiras de ver. Existem outras tantas possibilidades de vidas já vividas na terra. Sim, já se viveu muito sem Deus na terra e é esta a sabedoria histórica que me dá certa desesperança para o futuro. Ainda bem, porque a esperança se tornou um mandamento divino.
Ah, mas a voz da igreja novamente. Não, sim!: Orai irmãos para que o vosso sacrifício seja sempre a vossa vontade. Sacrifício = vontade, vontade= sacrifício. Socorro! A vida terrena se confunde com o sofrimento, apenas é uma passagem para o paraíso, um passaporte barato para uma viagem sem fim. O paraíso é o que importa que cada um pode alcançar por si mesmo, basta ter fé. Isto é o pior! O desespero aumentava, junto com a minha história que não pode aceitar todos os disparates dos homens. Deus não faz parte de minha história desde criança. Nela, o importante sempre foi correr riscos e fazer o melhor possível da vida terrena. Sou um homem da terra! Poder-se-ia viver melhor aqui, deixar a vida mais envolvente, então, porque viver melhor em outro mundo? Ah pensei que iria esquecer de mencionar que nunca gostei de padres....
Há muito tempo à consciência de risco tomara conta da minha vida, minhas aventuras infantis no Morro da Paineira eram provas disto. Lá sim, uma criança é feliz, já que estão sempre superando os seus limites. Época boa! Não tinha medo de nada, mesmo quando me machucava, sofria e chorava com a minha teimosia. Lembro que uma vez cai do tronco da paineira mais alta que tinha no vilarejo, fiz um corte imenso na perna e perguntei a minha mãe quando iria brincar na árvore novamente. Minha mãe disse: nunca mais! Achei que nunca mais era muito tempo para uma criança. Sim, três dias era muito tempo, ou tempo suficiente para o corte se fechar, pois um garoto teimoso não sabe medir o tempo. Em três dias, ou nunca mais lá de cima do pé da Paineira Gigante, do meio dos espinhos da árvore, avistei um disco voador. Ai! Fiquei com medo! Mas foi uma das maiores experiências da minha vida e entendi que o mundo é muito grande para uma criatura pequenina como eu.
Imagine só que quando pequenino já brincava de ser Deus, substitui Deus por mim mesmo, não por mim mesmo, mas pela a história de todos que me fizeram se reconhecer como homem. Estes me ensinaram o caminho dos sonhos, mostraram que existem vários deuses e extraterrestres, pois um Deus só é muito pouco para uma criança. Assim, transformo, multiplico, recrio e intensifico o mundo de sonhos que herdei. Este mundo que é o único mundo real. Aliás, não sei diferenciar sonhos da realidade. Penso que estava sonhando com o beijo de uma mulher e agora as coisas mudaram. Os sonhos se transformam! Mas voltando ao primeiro sonho, a virtude de ser teimoso é fazer de nossos sonhos realidade e quando os homens vivenciarem os sonhos abrirão um mar de possibilidades para as experiências humanas. Sim, a minha sabedoria histórica me dizia para ser teimoso, para viver minhas aventuras, mas também me dizia para ser prudente e ter responsabilidades com os meus atos. Nunca fui responsável, mas pensava na responsabilidade com a inocência de uma criança. A verdade é que estava em um dilema e novamente desesperado.
Neste dilema, pensava que muitos dos atos de teimosia levaram os seres humanos à experiência arrepiantes. Comecei a matutar sobre o fascismo, o quanto que tinha de teimoso naquele regime. Minha mente se ofuscou, pensei em ir embora, deixar aquele bar e nunca mais voltar. Deixar que meu desespero me levasse para dentro das estrelas, mas bebi em um só golo a cerveja do copo de cima da mesa e alguém resmungou: Ah, meu copo. Fiquei um pouco mais tonto, mas não o suficiente para levantar da cadeira e me atirar entre as estrelas. Então, olhava para os lados e me sentia imensamente sozinho, na solidão, bebi outro copo cheio de bebida e desta vez ninguém reclamou, acho que o copo era o meu. O copo certo para pessoa errada! E por que estamos sempre pensando no silêncio que não se ouve? Sim, o silêncio havia tomado conta da mesa e nem isto me acalmava, todas as coisas pareciam inúteis: a cerveja, os lados, os copos, o silêncio, os meus pensamentos, a minha história, as estrelas, as bebidas, o beijo, a minha infância, a imaginação, a memória e Deus então nem se fala.
Comecei a pensar espontaneamente se a beijasse contra a sua vontade toda a ilusão que tinha de seus lábios acabaria, mas os homens não podem viver de ilusões ou podem? Mas a verdade é que queria tanto o beijo que acabei de esquecer da falta de sentidos que me atacava naquele silêncio. Entretanto, não poderia agir desmedidamente contra a vontade dela. Tem certas ações que afetam para sempre o curso da vida das pessoas. Isto, a história havia me ensinado. Achei que o momento era inadequado e entendi que minha história era uma faca de dois gumes, pois me fazia sofrer e me ajudava a viver, como um pai a orientar seu filho o impulsionando e o impelindo para a vida.
Não restava nenhum ato de heroísmo em minha memória para lembrar, aliás, a história havia matado o heroísmo em mim ao ensinar que o enredo de nossas vidas são curtos. Não estava em condições de pensar, o pensamento só me atrapalha. Até o momento a razão me limitava, por isto, quis ser criança novamente, quis ser teimoso e inocente para encontrar a resposta que precisava e mais nada necessitava pensar. Eu inocente como uma criança, não tinha culpa em relação ao passado que não é apenas meu, mas de toda a humanidade. Neste momento eu era apenas ação!
Antes que meu ato de desespero se concretizasse, ela do outro lado da mesa do bar, com os olhos fixos no meu, numa voz doce e calma suspirou em meu ouvido: por que você me olha tanto? Ela era realmente diferente, uma mulher nunca faz este tipo de pergunta, quando percebe que foram descobertas por um homem os ignoram, não puxam assunto, esperam que os homens tomem as devidas atitudes, mas ela era uma mulher de atitude e eu com os ouvidos atentos e com o encanto doce de uma criança sem graça, perdido e enfeitiçado pelos seus olhos disse: quero beijá-la! Não acredito que disse isto, não deveria ter pedido, mas eu disse isto também. Ela sorriu, chegou mais perto de mim e me beijou. Naquele momento tudo se misturou com imensa intensidade, não sabia distinguir a minha boca da dela, não sabia se estava fazendo história, ou sendo levado por ela. Após o beijo, olhou fixamente nos meus olhos e me fez o pedido: ajuda-me.
Conto escrito em meadas de 2005... Ainda não pronto...

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